quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Eu fui... Motorista Particular!

Ela amava a terra, por isso, se tivesse que escolher entre comprar um bem – casa ou carro – ela optava pela casa, e assim, não adquiriu um carro, e só fez a carteira de motorista no Brasil para cumprir um requisito de melhoria de emprego, quando já tinha completado seus 30 anos. Portanto, dirigir, não estava nos seus planos e consequentemente, ela não se interessava por esse tipo de bem móvel.
Os primeiros anos na Europa foram de vislumbre e conhecimento. Era possível sair pela manhã para dormir em outro país ao fim do dia, viajando de ônibus e não de avião, e isso mostrava-lhe que os meios de transportes eram uma prioridade para os governos europeus. Desta forma, em meio a ônibus, trens, metrôs e bicicletas gratuitas, foi-lhe impossível sentir a necessidade de dirigir um veículo.
Com o tempo, os objetos de consumo podem mudar, por desejo ou necessidade, no caso dela, foi a necessidade que obrigou-a a entender um pouco de carros. 
Ocorreu que foi morar em um cidade e conseguiu um trabalho, num polo industrial, distante uns 15 km de casa. Inicialmente conseguia carona com o boss, patrão em italiano é capo (lembra do filme Al Capone) mas, conforme a empresa crescia, a frota de veículos também, e junto surgiam também,  novas responsabilidades no trabalho.
Ela observava o mundo a sua volta modificando-se, mas seu foco principal, ainda era, adaptar-se ao novo país e sobreviver, ou como diz um ditado popular: “matar um leão por dia”, até que, um dia o boss perguntou:
- Você sabe dirigir?
Assustada com a pergunta, e sem reconhecer os modelos de carros que tinha à sua frente, rapidamente respondeu:
- Não! Não sei dirigir!
Independente da língua, “não” deveria ser “não”, pois é uma palavra acompanhada por sinais gestuais e movimento de cabeça, capazes de demonstrar ser uma resposta negativa. E, é claro, que aquele homem importante e inteligente, dono de um império da moda, compreendia a sua resposta. Porém, foi só com o tempo, trabalhando com ele, que aprendeu que ele era uma pessoa de sucesso porque uma resposta negativa deveria se transformar em positiva, e rapidamente. 
Ele pegou um telefone, chamou a assistente da diretoria da empresa, e disse:
- Procure uma autoescola para a nova funcionária-estrangeira, ela precisa aprender a dirigir “amanhã”.
Imediatamente seguiu a assistente, enunciando, que não era “apenas” um problema de não saber dirigir, ela tinha medo. Ela tinha total desconhecimento dos veículos que o boss compara, disse que não conhecia aqueles modelos de carros no Brasil, e que tinha medo de andar num daqueles veículos “estranhos’ que ela via na garagem da casa e da empresa.
A assistente ria, achava engraçado ver uma pessoa com medo de uma fazer uma coisa boa. Esse sentimento inusitado fez com que ela fosse classificada como uma estrangeira-especial, particular, pois era a única pessoa que ela conhecia que não tinha vontade de dirigir carros como: Maserati; Mercedes-Benz; BMW; Volkswagen e Fiat. Sem falar na Ferrari, que ela percebeu o total desconhecimento daquela estrangeira sobre qual era a Ferrari (melhor deixar essa história para outro dia, uma vergonha, essas coisas que só acontecem em filmes...enfim, deixa prá lá...rs rs ).
E foi assim que a nova funcionária-estrangeira iniciou a autoescola, agora na Itália. Após 60 dias tinha obtido uma patente di guida, ou seja, ela tinha uma carteira de motorista, que autorizava-a a guiar diversos carros, desconhecidos e velozes, que lhe causavam medo!!! Assim, evitou contar que estava habilitada, para ter tempo de ir se acostumando com a ideia de que, a partir do momento que iniciasse a trabalhar como motorista particular, teria que ver aqueles carros, apenas uma máquina de condução, que é o que eles eram, e não como um objeto de consumo que determina uma classe social, poder e sedução.
Infelizmente, não é possível fugir ao destino, e ser motorista daquela família, era algo que já parecia estar escrito nas páginas do livro da vida daquela estrangeira, por isso, em algum momento, ela assumiria mais essa função.
O inverno chegou preanunciando que o tempo de fuga tinha terminado. Naquele dia, a neve havia caído o dia todo e ela não percebeu. Trabalhar numa empresa, na temperatura agradável de 22 graus, mantinha o corpo aquecido, o que permitia passar o dia usando roupas leves e camiseta de mangas curtas, enquanto que lá fora, a temperatura já estava em torno de menos 10 graus. Foi só ao fim do expediente, que se deu conta disso e assustada, pediu uma carona para casa. Os outros empregados não iam para a sua direção, assim só lhe restava pedir carona para o boss, que não tinha previsão de ir embora e irritado, disse-lhe:
- Você tem vários carros à sua disposição para ir para casa, escolha um e vá!
Ela, com os olhos marejados, disse:
- Acabei de aprender a dirigir e não sei guiar na neve...
Ele não se comoveu, simplesmente respondeu:
- Chegou a hora de enfrentar esse medo! A gente sempre tem o poder de escolher, assim: ou você pega um carro e vai para casa; ou você dorme dentro de um carro, é uma decisão sua... Disse isso saindo das garagens e voltando para suas tarefas na empresa.
Ela sentou-se no chão e chorou, não sabia o que fazer, foi quanto percebeu que quanto mais demorava para tomar uma decisão, mais a neve aumentava. 
A sua mente, assustada, por um momento, até cogitou a ideia de passar a noite dentro de um dos carros, no estacionamento da empresa, mas então lembrou-se que aquela era uma zona industrial, não havia nenhuma casa por perto, seria perigoso. Então, enxugou as lágrimas, decidiu que era a hora de partir.
Escolheu o carro menor, um smart. Depois descobriu que essa não era a melhor opção, ele tinha apenas 2 pedais e ela precisava aprender a lidar rapidamente com o câmbio automático. Aprendeu, na garagem, que as marchas eram ao contrário, assim que assimilou como andar naquele veículo, ergueu os olhos e descobriu que não enxergava nada, o gelo estava grosso e o ar quente demorava muito a fazer efeito, precisava descobrir um modo de “descongelar” a grossa camada de gelo que cobria os vidros.
A primeira ideia sua foi jogar água, não funcionou; tentou raspar com uma faca, também não obteve bom resultado; continuou procurando entender os objetos que tinha a sua disposição no carro e foi quando encontrou 1 kg de sal, sabia que ele devia ter alguma finalidade, já que churrasco não era uma especialidade italiana, assim, arriscou jogar nos vidros e finalmente, o gelo começou a derreter.
Ela ria e chorava, enquanto o gelo derretia. Quando finalmente se acalmou, sabia que tinha chegado a hora de enfrentar o seu medo.
Na estrada, aprendeu que não podia sair fora da fila indiana, local onde o gelo era mais firme; descobriu isso por descuido, quando o carro aquaplanou
Foi também na prática, que aprendeu a necessidade de manter-se numa velocidade constante e nunca, nunca acelerar nessas “geleiras”, pois o carro derrapa e te joga para fora da estrada. Ela ficou em sentido contrário, na pista, só uma vez, os motoristas, mais experientes, haviam percebido que ela estava aprendendo a guiar na neve e mantiveram a distância de segurança, os alertas dos carros piscavam e, gentilmente, esperaram que ela retomasse o seu lugar na fila da autoestrada. 
Nessa noite, ela percebeu que um trajeto que se fazia em trinta minutos, durou uma hora e trinta minutos, mas que para ela, parecia ter durado uma eternidade.
Quando chegou em casa, enfim respirou fundo e descansou, sentia a roupa que estava usando, estava colada no corpo, completamente molhada, graças ao suor causado pela adrenalina, mas ela estava bem, tinha conseguido chegar em casa, sã e salva. Porém, seu corpo mostrou que ainda estava sob efeito do estresse, ela não sentia as pernas, quando relaxou percebeu que não tinha forças para sair do carro, tudo tremia-lhe, as pernas, o mundo. Precisou ficar dentro do carro mais um tempo, respirou fundo novamente, olhou para o céu, e então, percebeu que era uma noite maravilhosa e que ela, uma estrangeira, tinha aprendido a guiar na neve italiana, sozinha, naquela noite linda.
Agora, essas lembranças eram para ela, mais do que uma maneira de compartilhar emoções, eram uma forma de terapia, capaz de ajudá-la a curar-se dos monstros que povoavam-lhe os pensamentos, desencorajando-a de seguir o seu destino, de tomar “uma decisão”. Agora, ela sabia que podia aprender a expulsá-los com sal, aquele agente químico poderoso, que derrete a neve, também era, capaz expulsar os seus demônios. Terminou de escrever e decidiu tomar um bom banho frio – com sal grosso – depois, deitou-se na cama, abriu a janela e admirou a lua, era uma noite linda, estava em casa, viva! 

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